Wednesday, June 23, 2010

Henrique Gurgel do Amaral Valente, meu avô – Por Dom Newton Holanda Gurgel (*)



Posso dizer que o conheci entre os anos de 1930-1954, ano de sua morte. Nossa primeira escola, de nossos irmãos e de muita gente da vila de Lages (hoje Acopiara), foi na sua casa. Com a sua filha, Lídia, minha tia e madrinha, aprendi muito. Era ela professora, como se dizia então,de 4ª. Entrança. Foi ela que me preparou para o Seminário. Ao concluir, com ela, o curso preparatório à Admissão, eu me julgava um doutor. Sabia tudo! Vou estudar no Seminário São José de Crato. Quando em março de 1937, ali cheguei, padre Montenegro, mestre de disciplina, fez um teste inicial, perguntando-me: “A rosa é bela”, quem é o sujeito. Respondi prontamente: A rosa. “Está aprovado”, disse ele, “Vai para o primeiro ano ginasial”.
A escola na casa de meu avô era assim: um verdadeiro curso preparatório de vestibular ao ginásio, ensinando até rudimentos de arte musical. Ali todos falávamos com relativa correção gramatical. Não se dizia, por exemplo, “pega ele”, “ontonte”, “gunverno”, “cravão”, e outras barbaridades. Minha avó porém era semi-analfabeta, mal ferrava o nome. Já o meu avô era um tipo versátil,conversador compulsivo, falava com desembaraço e, para mim, com muita sabedoria, vivacidade e pureza vernacular.
Certa vez, no fim das férias, fui até sua casa fora da vila, à margem do “rio” Quincoê , para me despedir e lhe perguntei: “Como o Sr. está de saúde, vovô?". Prontamente respondeu. “Vou bem ,mas como você sabe. “senectus est morbus” não é?. Só mais tarde, no decorrer dos estudos de Seminário, pude averiguar o alcance e veracidade do provérbio latino atribuído a Publius Terentius, que viveu antes de Cristo (AC). Meu avô era espirituoso! Um homem bem humorado, espontâneo e pronto a responder à qualquer provocação, especialmente dos adversários políticos. Estava sempre ao lado do vigário de Acopiara, padre João Antonio, sobretudo no tempo da LEC (Liga Eleitoral Católica) e em tudo mais o apoiava irrestritamente.
Do altar, aquele sacerdote fazia também uma campanha aberta e ardorosa contra a Maçonaria. E acontece, por ironia do destino, que as duas últimas filhas do meu avô terminaram casando com maçons. Foi o bastante para os seus adversários políticos lhe lançassem um susto: “Olhe aí, seu Henrique, o Sr. agora tem dois maçons na família”. Prontamente ele retornou ao interlocutor: "Isto é muito bom para você ficar sabendo que não é só sua família que tem gente ruim”.
Fervia a política, na aldeia, quando aportou ali uma boiada de gado zebu, que era novidade. Ficou encurralada no pátio da matriz para a venda de espécimes aos pecuaristas locais. Francisco Guilherme, seu genro, estava negociando um plantel de novilhotes para sua fazenda. Um deles tinha rajas no focinho que lembravam um pouco a fisionomia de Moreira Lima, candidato da oposição ao candidato da LEC para o governo do Ceará. Ele, meu avô, foi chegando e logo dizendo: “Compre não, Chico. Esse aí tem a cara do Moreira Lima”. Todos riram e o garrote foi substituído por outro.
Era assim avô: sempre alegre, otimista e criativo. Também muito “curioso” no fabrico de artigo de consumo doméstico, como farinha, rapadura e sabão. Certa vez o escutei falando de uma bebida de origem indígena - Mocororó - cajuína “artesanal”, que aprendera a fabricar com os nativos, no Siqueira, propriedade rural de sua família, hoje centro urbano em Fortaleza. Guardo também com carinho no arquivo da memória: mesmo sendo portador de uma incômoda hérnia inguinal, ele não se abatia. Gostava de andar pelas ruas soltando o verbo na sua natural loquacidade e envergando o seu uniforme cáqui.
Certa vez, estava eu vendendo cautelas de uma rifa em favor das Obras das Vocações Sacerdotais (OVS). Então o abordei em frente à nossa casa, ao lado da matriz. Imediatamente, notando minha timidez, ele empunhou a caneta e desembaraçadamente, apoiando-se na janela, firmou bela máscula caligrafia o seu sonoro nome: Henrique Gurgel Valente, pagando em seguida. São estes alguns retalhos , colhidos ao léu no acervo da memória que vão registrados acima,em homenagem àquele homem simples, de pequena estatura, mas gigante no espírito e na bela lição de vida que soube legar a posteridade.

(*) Dom Newton Holanda Gurgel, Bispo Emérito do Crato e neto de Henrique Gurgel do Amaral Valente.

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