Friday, November 27, 2009

CRATO - Histórias e Estórias do Crato de Antigamente - Por: Ivens Mourão


NE - A Eterna Rivalidade Flamengo e Vasco no Crato do Século XX


UMA VEZ FLAMENGO, FLAMENGO ATÉ MORRER.

Meu pai foi um torcedor símbolo do rubro-negro carioca. Seguiu, literalmente, o lema: “Uma Vez Flamengo, Flamengo Até Morrer”. Foi uma paixão iniciada com o time campeão de 1939, onde brilhavam Leônidas da Silva, Domingos da Guia e já se iniciava o genial Zizinho. A paixão sedimentou-se com o tri campeonato de 1942/1943/1944. Até o final da vida lembrava-se do time tri-campeão em cima do Vasco: Jurandir, Newton e Quirino; Biguá, Bria e Jaime; Valido, Zizinho, Pirilo, Tião e Vevé. Não cansava de repetir os detalhes do gol do Valido, o do tri, no último minuto. Deliciava-se com o “choro” dos vascaínos, dizendo que o gol fora ilegal, pois o Valido se apoiara nas costas de um defensor do Vasco. Ele completava: “E ainda foi de mão”. Para ele deve ter sido o gol do século.

No Crato, onde residiu de 1937 a 1955, era o torcedor mais famoso. Ainda hoje, os da sua época associam o nome Mourãozinho com o hábito de “assistir” aos jogos sentado numa cadeira de balanço de tucum, de frente para um rádio holandês e com uma quartinha cheia d’água ao lado, com um copo de alumínio tampando a quartinha. Os seguidos copos d’água acalmavam o seu nervosismo nas transmissões do outro fanático, Ary Barroso. Quando faltava energia ligava para “Seu Zé” (José Pereira, empregado do Armazém onde trabalhava) para ir falar com o “Pedro da Luz” para saber qual era o problema. Quando o “Seu Zé” dizia:

- “Mourãozinho o problema é no gerador e vai demorar”

Corria para improvisar uma bateria de carro, para ouvir o jogo do Flamengo.
Para ele todo juiz prejudicava o Flamengo. Nunca perguntava o nome do juiz e sim:

- “Quem é o ladrão?”.

A morte do grande presidente Gilberto Cardoso abalou-o, como se tivesse perdido um irmão querido. Uma derrota do Flamengo o deixava de muito mau humor.
Esta paixão rubro-negra transmitiu para os cinco filhos e daí para os netos e bisnetos. Sem dúvidas, será uma tradição que se perpetuará.

Presidente Gilberto Cardoso


Este é o time da final de 1944. Da esquerda para a direita: Jurandir, Quirino, Newton,Valido, Jaime, Bria, Pirilo, Zizinho, Tião, Biguá e Vevé

Identicamente, nos orientou que time torcer nos outros estados. Sempre tinha alguma relação com o Flamengo. Em São Paulo era o São Paulo, porque jogava o ídolo Leônidas. Em Porto Alegre era o Internacional, pois de lá vieram dois jogadores flamenguistas: Luizinho e Bodinho. Quando fui morar em Porto Alegre já tinha o Internacional para torcer. Lá morava o Marcelo, com a camisa do colorado e transmitindo a paixão para o filho Tiago. Em Minas, o Atlético, pela mesma razão de ter vindo o jogador Lero. Em Recife o Sport, devido à semelhança da camisa, e assim por diante. Em Fortaleza, a analogia era com o fato de ser o Ceará o “mais querido do Estado”, e devido aos ídolos Pipiu e Mitotônio. Tal paixão flamenguista não ficava impune perante os grandes rivais: os torcedores vascaínos. Uma derrota do Flamengo e o telefone da nossa casa (24.14, de veio), não parava de chamar. Até torcedores do Flamengo ligavam. E era comum, pois o Vasco era o grande time no final da década de 40 e início da de 50. Quando passamos a morar em Fortaleza (1956), já tínhamos um time para torcer: o Ceará. O Mendelssohn é o que tem maior paixão pelo Ceará. Num fim de semana veste a camisa do Flamengo e no outro, a do Ceará.
No final da vida papai assistiu, agora pela televisão, a conquista do tri-campeonato de 1999/2000/2001. Como era de praxe, na segunda-feira, fui à sua casa com os jornais, relatando a conquista, e levando um pôster. Mostrei para ele, mas não vi uma reação maior, como era comum.

A ateroesclerose senil estava embotando o seu cérebro. Mas, vez ou outra, ele nos surpreendia com um comentário próprio de quem estava na plenitude de sua consciência. Como o Ceará estava atravessando um período muito ruim, saiu-se com a seguinte frase, quando indagado sobre o Ceará.

- “Tanto apanha como dão nele”.

Pouco antes de falecer esteve um período no hospital. Ficou uns dias em apartamento, outro tanto na UTI e recebeu alta, para, menos de um mês depois falecer, em casa.
Em um dos dias em que se encontrava no Hospital, antes de ir para a UTI, tinha a companhia do Marcelo e do Mendelssohn. Estava repetindo uma frase, o que era próprio da doença. O Mendelssohn tentou indagar sobre o que era e ele continuava a repetí-la, mecanicamente. O Marcelo - que é médico - utilizou a técnica de fazer uma pergunta para ele esquecer aquela frase. Então, perguntou:

- “Papai, e o Ceará?”.
- “Tanto apanha como dão nele”.

O Mendelssohn, que estava ao seu lado, resolveu fazer uma brincadeira:

- “Papai, o seu Flamengo está do mesmo jeito. Tanto apanha como dão nele”.

A sua reação foi imediata. Estava com o olhar fixo para o teto do apartamento. Meneou a cabeça para o lado onde estava o Mendelssohn. Deu aquela “encarada”, abriu bem os seus olhos verdes, levantou mais a sobrancelha esquerda e disse, com um sorriso nos lábios e bem compassado:

- “É... mas é tri cam-pe-ão ca-ri-o-ca”.

Nada mais disse e nem precisava. Caso estivesse um pouco mais lúcido teria completado: “E em cima do Vasco!!!” Realmente, seguiu o lema que tanto repetiu: “Uma Vez Flamengo, Flamengo até Morrer”.

16 DE JULHO DE 1950

Esta rivalidade Flamengo x Vasco deixou-nos na memória o seguinte fato: Domingo, 16 de julho de 1950. Papai de terno de linho branco, mamãe (sua eterna Giseuda), muito elegante, ambos conduzindo três filhos (Yara, Raimundo e eu), para a missa das nove horas na Igreja de São Vicente. O Marcelo ficara com a babá e o Mendelssohn ainda não havia nascido. Naquele dia, no Rio de Janeiro, se decidia o IV Campeonato Mundial de Futebol.


Cartaz da Copa do Mundo de 1950

Ao chegarmos na calçada da igreja, uns três ou quatro vascaínos que aguardavam o início da missa na borda da Praça 3 de Maio, em frente à porta principal da Igreja, gritaram:

- “Mourãozinho, Mourãozinho, hoje nós, nós (e apontavam para eles) vamos ser campeões do mundo!!!”

Papai percebeu a ironia e não titubeou e respondeu:

- “Vocês? Vocês vão jogar é com o Uruguai!!!”.

O Vasco tinha oito jogadores na seleção, sendo cinco titulares e toda a Comissão Técnica era vascaína. Daí desejarem reivindicar a conquista só para eles. Ao final da tarde, no Maracanã, aconteceu o desastre perante 200 mil pessoas.

Maior público, em todos os tempos, para uma partida de futebol.

O Raimundo lembrava que eu preenchi a tabela com o resultado e escrevi Uruguai no espaço de Campeão do Mundo. Uma lágrima borrou o nome. Como era de praxe aos domingos, toda a família encaminhou-se para a Praça Siqueira Campos, local obrigatório de encontro da sociedade cratense e do “footing” dos jovens dando voltas e mais voltas na praça. Havia uma estranha cor cinza no ar, o enorme silêncio da cidade com a tristeza de todos, como a de um velório. E era mesmo. Exatos 57 anos depois esse ambiente de tristeza se repetiu. Era a missa de sétimo dia de falecimento do meu irmão Raimundo. Meu pai, naquele dia de 1950, no seu íntimo, estava satisfeito pela decepção dos vascaínos por não poderem se vangloriar do título de campeão. Na verdade, estavam iniciando a sua tradição de vice-campeão e o nome de Vice da Gama. Mas ficou, como todos os brasileiros, traumatizado com a derrota. Vinte anos depois, na Copa de 70, com a nossa vitória de 3 x 1 sobre o Uruguai pôde desabafar, ao final do jogo, exclamando diante da televisão:


Igreja de São Vicente. Em frente à porta principal, na calçada da praça, ficavam os vascaínos.

- “Hoje, vocês (os uruguaios) jogaram contra o Brasil!!!”. Quer dizer, não foi contra o Vasco...

Fonte: Livro "Só no Crato" de Ivens Mourão - Direitos de Publicação concedidos ao Blog do Crato pelo autor - TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

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