Esta postagem me foi autorizada pela autor: Professor Luiz Felipe de Alencastro, grande amigo de Violeta e Miguel Arraes. Mora em Paris onde pesquisa e ensina. Ele tem um blog muito interessante chamado Sequências Parisienses (http://sequenciasparisienses.blogspot.com/). Apenas postei o texto dele após me autorizar com muito carinho: Sr. José, Pode publicar, sim, a postagem. Fico muito honrado de estar num blog do Crato, terra dos meus queridos e saudosos Miguel e Violeta
O texto que segue abaixo é muito interessante pois revela que haviam estrutura intercontinentais, no bojo do mercantilismo, que organizavam forças militares que juntavam as duas faces (América e África) numa só força militar. Aliás quando se observar a própria formação da bandeiras paulistas, talvez se encontre nelas uma forma de organização deste tipo de força. É um texto para historiades se interessarem pelo tema.
O texto abaixo é extraído de um artigo meu intitulado História Geral das Guerras Sul-Atlânticas: o episódio de Palmares que será publicado em Flávio Gomes (org.), Mocambos de Palmares. História, historiografia e fontes. 7Letras editora/FAPERJ, R.J.,2009.
O tema do artigo é mostrar (de novo) que o Atlântico Sul configurava um só espaço colonial unindo o Brasil à África portuguesa, e principalmente à Angola. Noutra parte do artigo, mostro como Palmares também foi atacado por milicianos reinóis e “brasílicos” (colonos do Brasil que ainda não possuiam o sentimento nacional) que haviam combatido em Angola. E tinham, portanto, a prática das guerras africanas. Aqui me concentro num poema sobre milicianos pobres que reclamam por não ter recebido prebendas após a destruição de Palmares. Nas notas de pé página marquei as diferenças entre esta interpretação e as análises de Luiz Mott e de Clóvis Moura, que também estudaram o poema. Marco, antecipadamente, o aniversário da morte de Zumbi, no dia 20 de novembro.
***
« Um texto de um pé-rapado brasílico reinvidica sua parte de glória na defesa do ultramar. Trata-se de um poema sobre a petição dirigida ao Conselho Ultramarino por um soldado raso que combatera como “praça de pé” (sic) no ataque final a Palmares, em 1694. Pereira da Costa, sempre atento à documentação, publicou o poema em seus Anais Pernambucanos. Mas não indica de onde o extraiu, nem se havia papelada anexa. Composto no esquema de rima abbaaccddc, o poema é uma variante da „décima espinela‟, forma literária do barroco ibérico utilizada, entre outros, por Calderon de la Barca (“La vida es sueño”) e Gregório de Matos (“Define sua cidade”). Na sequência, a décima popularizou-se na América Latina, sendo ainda celebrizada nos dias de hoje pela guajira cubana, a literatura de cordel e os violeiros nordestinos. Neste caso -, como no gênero “dez a quadrão”-, a décima é dialogada, com um violeiro entoando um verso, o outro o verso seguinte, e os dois juntos cantando os dois últimos versos. Assim, a décima dá ao poema o tom de uma queixa picaresca que pode ter sido lida, recitada ou cantada em Pernambuco, dando grande alcance às sentenças dos versos. Zebedeu, nome de origem bíblica tornado folclórico em Pernambuco e noutras partes, “filho de Braz Vitorino” (para rimar com Conselho Ultramarino), não se refere aqui a uma pessoa precisa, mas a um grupo de soldados pobres, preteridos na distribuição de presas e prêmios depois da guerra de Palmares. O apelo ao Conselho Ultramarino -, “justiceiro” e “afamado”-, merece reflexão.
Os versos ilustram o conhecimento amplo, nesta parte do ultramar, de que este foro palatino -, mais que o governador da capitania, o governador-geral e o próprio rei -, apresentava-se como a instância legítima e adequada para a solução definitiva dos contenciosos coloniais. Em seguida, como apontei alhures, evidencia-se a repactuação entre o centro e a periferia mediante a distribuição de cargos e o reescalonamento do mérito dos combates ultramarinos.
Contemporâneo da obra de Gregório de Matos, o poema retrata a situação do praça de pré, recrutado “quase menino” e despachado mal equipado, descalço (talvez venha daí a autoironia da expressão “praça de pé”), para a friagem da Serra da Barriga. “De fome e frio morrendo, descalço de pés no chão”, para ali combater “noite e dia”, onde “se estrepou” (isto é, se feriu no “estrepe”, paus pontiagudos postos em torno de Palmares ou enfiados em buracos dissimulados, os “fojos”). Sem receber nenhuma recompensa em propriedade, em soldo ou em promoção, nem “terras, [nem] dinheiro, [nem] patente”. O verso sobre o “valentão” Félix José pode referir-se à generalidade dos camponeses açorianos vítimas de recrutamento forçado, cuja inexperiência de combate valia-lhes frequemente o apodo de “bisonhos”. Tanto Zebedeu, pobre “bolônio” (bocó), como seus aparceirados, foram em frente, dando batalha feroz aos palmaristas, “vis escravos” a quem “não trataram como gente”, quer dizer, a quem trataram como se fossem bichos. No final das contas, foram os soldados e cabos que se acovardaram que receberam recompensas.
Sem recomendações de seus superiores ou de potentados locais, estes “zebedeus” invocavam a proteção e o testemunho de santo Antônio, de quem traziam o santinho ou a medalha (“junto a mim noite e dia”), e que fora oficialmente declarado patrono e soldado pago das tropas que atacaram Palmares. E no final, o pedido para o que dá o direito de juntar bandoleiros e pilhar índios e quilombolas com a chancela da Coroa. A única saída para quem não tinha nome ou propriedade. O lugar de quem tudo pode no sertão: capitão
Eis o poema em verso quebrado do praça estrepado:
“Ao Conselho Ultramarino
Que tão justiceiro é,
Zebedeu praça de pé
Filho de Braz Vitorino,
Bem moço, quase menino,
Para Palmares marchou,
Pelo que lá se estrepou
Sendo um dos desgraçados,
Que voltaram aleijados
E por fim nada ganhou.
Ali de arcabuz na mão,
Dia e noite combatendo,
De fome e frio morrendo,
Descalço, de pés no chão,
Ao lado do valentão Félix José dos Açôres
Que apenas viu dos horrores,
O painel desenrolar-se
Foi tratando de moscar-se
Com grande sofreguidão.
Do que venho de narrar,
Apesar de ser bolônio,
Pode o padre Santo Antônio
Muito bem corroborar,
O que não é de esperar
Proceda d'outra maneira,
A sua fieira
Sua afeição, valentia,
Pois junto a mim noite e dia
Não desertou da trincheira
Ele viu, bem como eu,
Quando o combate soou
Quando a corneta tocou,
A gente que então correu;
A essa foi que se deu
Como garbosa e valente
Terras,dinheiro, patente
Com grande injustiça e agravos
P'ra aquêles que aos vis escravos
Não trataram como gente.
A vós Conselho afamado
Que a justiça só visais,
Para que não amparais
O pobre do aleijado?
Que no mundo abandonado
Sem ter quem lhe estenda a mão,
Tem por certo a perdição,
Da vida, pois quase morto,
Só poderá ter confôrto,
Se o fizerdes - capitão.”
Quer tenham sido mercenários dos fazendeiros na América, quer fossem milicianos agregados às tropas regulares em Angola, tais combatentes – capitães, cabos e “zebedeus” -, faziam valer seus talentos de bugreiros e de capitães do mato nos dois lados do mar.
Para além dos documentos, e na ausência de outros textos como o poema acima, é preciso considerar a troca de experiências facultada pelo convívio destas tropas tricontinentais, multiétnicas e de variada condição social, cujo traço comum era o Atlântico Sul, e não o Brasil ou Angola. Torna-se essencial mapear os itinerários para saber quem conversava com quem, num mundo em que muita gente sabedora das coisas não sabia escrever. Nos arranchamentos angolanos e brasileiros, nos tombadilhos dos navios que atravessavam o oceano, nos serões africanos e nas selvas americanas, essas tropas compunham um gênero de novo exército colonial de brancos, negros, índios e mestiços que, “de pés no chão”, pilhava rebeldes e nativos dos dois continentes.
Não há exemplo de tropas deste gênero e com este raio de ação, agindo nos outros teatros da moderna expansão européia.
Por: José do Vale Pinheiro Feitosa
O texto que segue abaixo é muito interessante pois revela que haviam estrutura intercontinentais, no bojo do mercantilismo, que organizavam forças militares que juntavam as duas faces (América e África) numa só força militar. Aliás quando se observar a própria formação da bandeiras paulistas, talvez se encontre nelas uma forma de organização deste tipo de força. É um texto para historiades se interessarem pelo tema.
O texto abaixo é extraído de um artigo meu intitulado História Geral das Guerras Sul-Atlânticas: o episódio de Palmares que será publicado em Flávio Gomes (org.), Mocambos de Palmares. História, historiografia e fontes. 7Letras editora/FAPERJ, R.J.,2009.
O tema do artigo é mostrar (de novo) que o Atlântico Sul configurava um só espaço colonial unindo o Brasil à África portuguesa, e principalmente à Angola. Noutra parte do artigo, mostro como Palmares também foi atacado por milicianos reinóis e “brasílicos” (colonos do Brasil que ainda não possuiam o sentimento nacional) que haviam combatido em Angola. E tinham, portanto, a prática das guerras africanas. Aqui me concentro num poema sobre milicianos pobres que reclamam por não ter recebido prebendas após a destruição de Palmares. Nas notas de pé página marquei as diferenças entre esta interpretação e as análises de Luiz Mott e de Clóvis Moura, que também estudaram o poema. Marco, antecipadamente, o aniversário da morte de Zumbi, no dia 20 de novembro.
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« Um texto de um pé-rapado brasílico reinvidica sua parte de glória na defesa do ultramar. Trata-se de um poema sobre a petição dirigida ao Conselho Ultramarino por um soldado raso que combatera como “praça de pé” (sic) no ataque final a Palmares, em 1694. Pereira da Costa, sempre atento à documentação, publicou o poema em seus Anais Pernambucanos. Mas não indica de onde o extraiu, nem se havia papelada anexa. Composto no esquema de rima abbaaccddc, o poema é uma variante da „décima espinela‟, forma literária do barroco ibérico utilizada, entre outros, por Calderon de la Barca (“La vida es sueño”) e Gregório de Matos (“Define sua cidade”). Na sequência, a décima popularizou-se na América Latina, sendo ainda celebrizada nos dias de hoje pela guajira cubana, a literatura de cordel e os violeiros nordestinos. Neste caso -, como no gênero “dez a quadrão”-, a décima é dialogada, com um violeiro entoando um verso, o outro o verso seguinte, e os dois juntos cantando os dois últimos versos. Assim, a décima dá ao poema o tom de uma queixa picaresca que pode ter sido lida, recitada ou cantada em Pernambuco, dando grande alcance às sentenças dos versos. Zebedeu, nome de origem bíblica tornado folclórico em Pernambuco e noutras partes, “filho de Braz Vitorino” (para rimar com Conselho Ultramarino), não se refere aqui a uma pessoa precisa, mas a um grupo de soldados pobres, preteridos na distribuição de presas e prêmios depois da guerra de Palmares. O apelo ao Conselho Ultramarino -, “justiceiro” e “afamado”-, merece reflexão.
Os versos ilustram o conhecimento amplo, nesta parte do ultramar, de que este foro palatino -, mais que o governador da capitania, o governador-geral e o próprio rei -, apresentava-se como a instância legítima e adequada para a solução definitiva dos contenciosos coloniais. Em seguida, como apontei alhures, evidencia-se a repactuação entre o centro e a periferia mediante a distribuição de cargos e o reescalonamento do mérito dos combates ultramarinos.
Contemporâneo da obra de Gregório de Matos, o poema retrata a situação do praça de pré, recrutado “quase menino” e despachado mal equipado, descalço (talvez venha daí a autoironia da expressão “praça de pé”), para a friagem da Serra da Barriga. “De fome e frio morrendo, descalço de pés no chão”, para ali combater “noite e dia”, onde “se estrepou” (isto é, se feriu no “estrepe”, paus pontiagudos postos em torno de Palmares ou enfiados em buracos dissimulados, os “fojos”). Sem receber nenhuma recompensa em propriedade, em soldo ou em promoção, nem “terras, [nem] dinheiro, [nem] patente”. O verso sobre o “valentão” Félix José pode referir-se à generalidade dos camponeses açorianos vítimas de recrutamento forçado, cuja inexperiência de combate valia-lhes frequemente o apodo de “bisonhos”. Tanto Zebedeu, pobre “bolônio” (bocó), como seus aparceirados, foram em frente, dando batalha feroz aos palmaristas, “vis escravos” a quem “não trataram como gente”, quer dizer, a quem trataram como se fossem bichos. No final das contas, foram os soldados e cabos que se acovardaram que receberam recompensas.
Sem recomendações de seus superiores ou de potentados locais, estes “zebedeus” invocavam a proteção e o testemunho de santo Antônio, de quem traziam o santinho ou a medalha (“junto a mim noite e dia”), e que fora oficialmente declarado patrono e soldado pago das tropas que atacaram Palmares. E no final, o pedido para o que dá o direito de juntar bandoleiros e pilhar índios e quilombolas com a chancela da Coroa. A única saída para quem não tinha nome ou propriedade. O lugar de quem tudo pode no sertão: capitão
Eis o poema em verso quebrado do praça estrepado:
“Ao Conselho Ultramarino
Que tão justiceiro é,
Zebedeu praça de pé
Filho de Braz Vitorino,
Bem moço, quase menino,
Para Palmares marchou,
Pelo que lá se estrepou
Sendo um dos desgraçados,
Que voltaram aleijados
E por fim nada ganhou.
Ali de arcabuz na mão,
Dia e noite combatendo,
De fome e frio morrendo,
Descalço, de pés no chão,
Ao lado do valentão Félix José dos Açôres
Que apenas viu dos horrores,
O painel desenrolar-se
Foi tratando de moscar-se
Com grande sofreguidão.
Do que venho de narrar,
Apesar de ser bolônio,
Pode o padre Santo Antônio
Muito bem corroborar,
O que não é de esperar
Proceda d'outra maneira,
A sua fieira
Sua afeição, valentia,
Pois junto a mim noite e dia
Não desertou da trincheira
Ele viu, bem como eu,
Quando o combate soou
Quando a corneta tocou,
A gente que então correu;
A essa foi que se deu
Como garbosa e valente
Terras,dinheiro, patente
Com grande injustiça e agravos
P'ra aquêles que aos vis escravos
Não trataram como gente.
A vós Conselho afamado
Que a justiça só visais,
Para que não amparais
O pobre do aleijado?
Que no mundo abandonado
Sem ter quem lhe estenda a mão,
Tem por certo a perdição,
Da vida, pois quase morto,
Só poderá ter confôrto,
Se o fizerdes - capitão.”
Quer tenham sido mercenários dos fazendeiros na América, quer fossem milicianos agregados às tropas regulares em Angola, tais combatentes – capitães, cabos e “zebedeus” -, faziam valer seus talentos de bugreiros e de capitães do mato nos dois lados do mar.
Para além dos documentos, e na ausência de outros textos como o poema acima, é preciso considerar a troca de experiências facultada pelo convívio destas tropas tricontinentais, multiétnicas e de variada condição social, cujo traço comum era o Atlântico Sul, e não o Brasil ou Angola. Torna-se essencial mapear os itinerários para saber quem conversava com quem, num mundo em que muita gente sabedora das coisas não sabia escrever. Nos arranchamentos angolanos e brasileiros, nos tombadilhos dos navios que atravessavam o oceano, nos serões africanos e nas selvas americanas, essas tropas compunham um gênero de novo exército colonial de brancos, negros, índios e mestiços que, “de pés no chão”, pilhava rebeldes e nativos dos dois continentes.
Não há exemplo de tropas deste gênero e com este raio de ação, agindo nos outros teatros da moderna expansão européia.
Por: José do Vale Pinheiro Feitosa
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