(excertos do artigo publicado n’O Estado de S.Paulo)
O papa não é o mesmo, a cidade é outra e os tempos mudaram, mas o paralelo é incontornável. Quando, em 1979, João Paulo II falou numa Varsóvia submersa no som dos sinos que repicavam, começou a acabar a história do comunismo europeu. Ontem, em Havana, Bento XVI falou aos cubanos, retomando os antigos temas da verdade, da liberdade de consciência, de fé e de expressão. Será esta a centelha do colapso de um comunismo caribenho que copiou os traços essenciais do sistema inventado na URSS de Stalin?
Não é a primeira visita papal a Cuba. João Paulo II falou em Havana em 1998, iniciando uma ambígua aproximação entre a Igreja e o regime. De lá para cá, como explica a blogueira Yoani Sánchez, "podemos rezar em voz alta, mas criticar o governo continua a ser pecado, blasfêmia". Há 14 anos a sentença final do papa foi sobre a liberdade do espírito. Será viável retalhar o princípio da liberdade em fatias, tolerando uma delas para conservar o veto às demais?
Cuba é irrelevante sob os pontos de vista da economia e da geopolítica globais. É, contudo, um teatro fundamental para o debate sobre o tema da liberdade. Os Castros reconheceram, literalmente, o fracasso do sistema cubano. Mas os muros da ilha caribenha continuam cobertos pela palavra de ordem apocalíptica que condensa a doutrina do poder: "Socialismo ou morte". (...)Terá futuro um regime que admite fatias diversas de liberdade, mas rejeita de modo absoluto o exercício das liberdades políticas?
O destino de Cuba tem implicações decisivas para a esquerda latino-americana. Na Europa, as esquerdas aprenderam a lição da URSS e abraçaram o princípio da liberdade política. Na América Latina, onde o pensamento de esquerda se tingiu de nacionalismo e antiamericanismo, um Muro de Berlim mental continua em pé. O teorema da "ditadura virtuosa", que serve como álibi para a fidelidade ao regime castrista, reflete a alma dessa esquerda. "Por que insistir nas liberdades, se há saúde e educação?", indagam quase todos os nossos "intelectuais progressistas".Bento XVI pisou em solo cubano mencionando os "presos e seus familiares", palavras simples que não foram pronunciadas nenhuma vez por Lula ou Dilma Rousseff. Cuba não é a Polônia de 1979.
A ilha caribenha marcha, numa aventura difícil e incerta, rumo a um capitalismo sem liberdades políticas. Seria esse o novo horizonte utópico da esquerda latino-americana?
(*) Demétrio Magnoli é sociólogo, doutor em geografia humana pela USP.
E-MAIL: demetrio.magnoli@uol.com.br
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