Saturday, October 30, 2010

CRATO - Histórias e Estórias do Crato de Antigamente - Os Comunistas - Por: Ivens Mourão


VI – OS COMUNISTAS


O Crato, como o restante do país, também foi vítima da chamada “redentora”. A cidade presenciou, estarrecida, o peso da total arbitrariedade de uma ditadura. Cidadãos trabalhadores e honestos, da noite para o dia foram arrancados de seus lares e submetidos a humilhações de toda sorte, sendo, inclusive, torturados. Os responsáveis eram pessoas completamente despreparadas para o convívio democrático. Bastava uma denúncia de quem quer que fosse, para que uma pessoa passasse pelo vexame de uma prisão sem culpa formal, sem prova alguma. Chegava à “autoridade” e o acusava de “comunista”. Estava decretada a prisão.

O Crato era uma cidade pequena onde todos se conheciam. O Luís, por exemplo, era uma pessoa pública. Dono, durante anos, da principal sorveteria da cidade, freqüentador assíduo das conversas da Praça Siqueira Campos, proprietário de uma Imobiliária legalmente constituída e trabalhando dia e noite na sua atividade. Transformou-se, da noite para o dia, fantasiosamente, em um perigoso guerrilheiro que iria repetir na Serra do Araripe os feitos dos barbudos das montanhas cubanas. Um inocente jogo de baralho, cujas partidas eram disputadas com caroços de feijão ou milho, passou a ser uma “terrível” célula comunista, onde eram arquitetados os mais tenebrosos planos. A venda de terrenos em um loteamento no Grangeiro passou a ser o “assentamento de guerrilheiros”. Torna-se difícil, para a geração atual, acreditar que tal paranóia realmente aconteceu.

O Luís, que nunca foi, não é e nunca será comunista, foi preso tantas vezes que perdeu a conta. De tanto ser preso, virou celebridade. Até as rádios de Fortaleza noticiavam sobre os prisioneiros do Crato. Com tanta popularidade, os verdadeiros comunistas ficaram curiosos por conhecer este “camarada”, perdido lá no Crato. Ganhou “status” de comunista sem nunca ter sido. Começou a receber, na prisão, latas e latas de doce em conserva que ele ia empilhando. Algumas vinham até com bilhetes dos “camaradas”, exortando-o à resistência etc etc... Como não deu vencimento, quando da libertação solicitou ao major para distribuí-las com outros presos, de todos os matizes. De vez em quando chegava um soldado do 23ºBC, na cela, indagando: - “Quem é Luiz Gonzaga Bezerra Martins”?
- “Sou eu.”
- “Encomenda para o senhor”
Várias vezes, na Siqueira Campos, foi assediado por pessoa estranha, cheia de mistérios, de cuidados, travando o seguinte diálogo:
- Companheiro, eu sou fulano, do partido, estou aqui para prestar solidariedade à sua luta de resistência, bla, blá, blá, blá. Notamos que você nunca se filiou e tenho a missão de convidá-lo a assinar a nossa ficha de inscrição.
- Ih!! Quero nada, rapaz. Que conversa é essa. De jeito nenhum! Eu tenho horror a obrigação. Não suporto viver com nenhum tipo de restrição. Já fui convidado a participar de Câmara Junior, Rotary e nunca aceitei.” “Deus me livre!” Não agüentei Seminário, internato do Colégio Cearense somente porque não suporto que ninguém me imponha limites. Partido político da mesma forma. Seja ele qual for. Eu quero ter a minha liberdade de ir e vir. Sou simpatizante. Agora, eu sou um socialista, pois defendo a justiça social. Mas não sou e nunca serei militante de partido político nenhum.
Outro que sofreu perseguições foi o Dr. Raimundo Bezerra. Era filho de uma mulher extremamente caridosa, a Dona Zezinha. A pedido dela e, depois por iniciativa própria tinha um determinado dia para atender, gratuitamente, à população pobre da cidade. Logo apareceu um idiota e outros, mais ainda, devidamente fardados e engalanados, que acreditaram que ele recebia dinheiro de Cuba para fazer aqueles atendimentos.


Na foto à esquerda a Dona Zezinha, a caridade em pessoa, induziu o filho a atender gratuitamente aos pobres, sem ajuda de Cuba.
Na foto à direita o Sr. Ernani Silva, vítima da tal “Redentora”

O Luís sentia uma enorme revolta quando via um homem da grandeza do Sr. Ernani Silva, trancafiado com 14 pessoas, num cubículo onde mal cabiam seis. Era uma colher só para todos se servirem da comida. E ainda mais, sob as ordens de um major alcoólatra, sendo submetido, com os demais cratenses, a dividirem aquele cubículo onde um aparelho sanitário entupido (provavelmente assim preparado), fazia escorrer fezes e a urina, para os arremedos de colchões espalhados pelo chão. Mas uma coisa a ditadura não conseguiu: acabar com o humor dos perseguidos. Este foi mantido incólume, senão, melhorado.

O PRESIDENTE

A visita do Castelo Branco ao Crato não foi nada agradável para o Luís. A amizade dele com o Dr. José Ribeiro Dantas, promotor público, acabou sendo responsável pelo fato constrangedor. Antes da sua chegada o Dr. José Ribeiro comentou com o Luis sobre o orgulho dele em poder hospedar o Presidente da República. E o Luís:
- “Deixa de besteira Zé. Ele não vai nem dormir lá. Vai usar a tua casa só pra mijar”.
A filha do Dr. José Ribeiro ficou encarregada de recolher doações de dinheiro, junto ao comércio cratense, com a finalidade de comprar um presente para ser ofertado ao Presidente. Passou na Imobiliária do Luís e ele deu a sua contribuição. Quando a menina ia saindo ele comentou:

- “Compra uma coroa”.


Como os ditadores se consideram reis absolutistas, nada melhor que uma coroa para coroar o ditador. Chegando em casa a menina comentou com o pai:

- “Mas o tio Luís é muito engraçado. Mandou que eu comprasse uma coroa”.

Visita de Castelo Branco ao Crato, ao desembarcar no aeroporto de Fátima, na Chapada do Araripe. É cumprimentado pelo prefeito Pedro Felício Cavalcanti. Ao lado, o bispo Dom Vicente de Araújo Matos.

Estava na casa do Dr. José Ribeiro a equipe precursora da vinda do Presidente, composta de militares da segurança. Como estava em plena vigência do festival da besteira que assolava o país, um militar, chegou à “brilhante” conclusão:

- “O que? Coroa? É coroa de flores. Vão assassinar o Presidente. Quem é este Luís? Luís Gonzaga Bezerra Martins?”


Consulta a lista dos “comunistas” do Crato. Lá está o nome do Luís como já tendo sido preso. Não quis saber se a prisão foi justa ou injusta. O Luís foi preso e levado para o 23º BC de Fortaleza, prometendo que, da próxima vez, diria que o Presidente era:
- “Alto, louro de olhos azuis”.



Autógrafo de 10 presos políticos do Crato, entre eles o Dr. Raimundo (6980) e o Luís (6986) ao chegarem no 10º GO de Fortaleza, de triste memória.


OS GUERRILHEIROS DA SERRA DO ARARIPE

Em julho de 1964, depois de um ano e meio tive condições de gozar umas férias. Passei o ano de 1963 estudando pesado no Cursinho da Sudene, para o vestibular da Escola de Engenharia. Passado o vestibular, entrei direto no exigente curso de Engenharia. Quando chegou o mês de julho resolvi passar os trinta dias na casa do Luís, no Crato. O movimento político estudantil era muito atuante, tanto no cursinho da Sudene como na Universidade. Mas eu, politicamente, era completamente alienado. Com as seguidas idiotices que a tal redentora estava fazendo, comecei a despertar para os absurdos que estavam sendo cometidos. Excelentes professores da Escola presos por razões mais sem sentido, próprias de um festival da besteira. Tínhamos um professor de Física, o Dr. Milton Ferreira de Sousa. Um idealista que viera de uma pós-graduação nos Estados Unidos para ensinar no Ceará, quando poderia ter ido para um centro mais adiantado no seu estado natal: São Paulo. A assinatura do professor Milton parecia com a palavra Miltoff. Por isso ele foi apelidado, pelos primeiros alunos da Escola, de Miltoff. E o apelido pegou. Logo após o golpe, a Escola foi invadida por um Coronel para prender esse russo Miltoff.

Não sei o que de verdade ou fantasia tem nessa versão. Mas, naquela época tudo era possível, alguém ser preso por causa de um apelido.

Mas, como além do Dr. Milton, foram presos outros professores que podem ter sido vítimas de “dedurismo” de alunos ou mesmo professores. Os motivos tão idiotas como esse acima relatado: ter oferecido um livro sobre teoria marxista a um aluno; criticado ou sido irreverente com alguns professores não tão dedicados, como ele, ao magistério; ter expressado opinião sobre qualquer assunto político da época; simpatia por algum partido político etc. Ou seja, temas ou assuntos corriqueiros hoje em dia. Na época, era atentado à segurança nacional. Tristes tempos! O fato é que ele foi preso. Quando foi solto, o desgosto era grande que resolveu abandonar os seus sonhos e ir embora para São Carlos/SP. O Ceará perdeu um grande pesquisador. Até hoje o Professor Milton continua o grande pesquisador que era. Nunca se revelou esse comunista “perigoso”. Ao contrário, é um grande patriota que continua trabalhando, embora aposentado, para a Universidade de São Carlos. Por isso, tanto a Escola de Engenharia como o Cursinho da Sudene tinham fama de ser um antro de comunistas. E eu, no meio de tudo isso, só pensando em estudar.

Cheguei ao Crato e, diariamente, tinha um jogo de buraco no apartamento do Luís. Participavam vários amigos, entre eles o Dr. Raimundo Bezerra. Eram parentes e quase irmãos, pois foram criados juntos desde Crateús. Durante o jogo a conversa girava somente em torno do jogo em si. Eram duplas e uma tentava intimidar a dupla adversária. Pressionavam quando alguém demorava a jogar. Enfim, não se falava nem em mulher, nem da vida alheia e muito menos de política. Embora todos tivessem suas convicções políticas e não concordassem com as asneiras que estavam sendo feitas no país. Eu, quando não estava passeando na praça ou num cinema, ficava “aperuando” o jogo. Logo me entediava e ia dormir.


Foto colhida no prédio em que morava o Luís, em Crato. Eu estou à direita com a camisa da Engenharia. Ao meu lado, de óculos, meu irmão Mendelssohn. As três filhas do Luís: Cristina, Roseana e Sandra. A esposa do Luís, Margarida e minha mãe, Giseuda. Meu pai, Mourãozinho, não dispensava o terno.


Logo após o meu retorno a Fortaleza, uma patrulha do Exército arromba, literalmente, a porta do apartamento do Luís e, armados de metralhadoras, prendem aquela célula de guerrilheiros comunistas que estavam preparando uma contra-revolução na Serra do Araripe. Entre eles, o vizinho do Luís, pessoa totalmente avessa à política. Era uma pessoa alta e foi colocado numa cela que não podia ficar em pé, nem deitado. Para agravar mais ainda ele sofria de claustrofobia. Será que eu estaria contando esta história se a invasão tivesse ocorrido quando ainda estava lá? Como o vizinho foi preso, eu, como hóspede, também seria preso. Como é que eu iria explicar para aqueles parvos que eu era apenas estudante da Escola de Engenharia e não um agente comunista de Fortaleza fazendo a ligação com os guerrilheiros da Serra do Araripe?...

Por: Ivens Mourão - Só no Crato

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