O Crato, como o restante do país, também foi vítima da chamada “redentora”. A cidade presenciou, estarrecida, o peso da total arbitrariedade de uma ditadura. Cidadãos trabalhadores e honestos, da noite para o dia foram arrancados de seus lares e submetidos a humilhações de toda sorte, sendo, inclusive, torturados. Os responsáveis eram pessoas completamente despreparadas para o convívio democrático. Bastava uma denúncia de quem quer que fosse, para que uma pessoa passasse pelo vexame de uma prisão sem culpa formal, sem prova alguma. Chegava à “autoridade” e o acusava de “comunista”. Estava decretada a prisão.
O Crato era uma cidade pequena onde todos se conheciam. O Luís, por exemplo, era uma pessoa pública. Dono, durante anos, da principal sorveteria da cidade, freqüentador assíduo das conversas da Praça Siqueira Campos, proprietário de uma Imobiliária legalmente constituída e trabalhando dia e noite na sua atividade. Transformou-se, da noite para o dia, fantasiosamente, em um perigoso guerrilheiro que iria repetir na Serra do Araripe os feitos dos barbudos das montanhas cubanas. Um inocente jogo de baralho, cujas partidas eram disputadas com caroços de feijão ou milho, passou a ser uma “terrível” célula comunista, onde eram arquitetados os mais tenebrosos planos. A venda de terrenos em um loteamento no Grangeiro passou a ser o “assentamento de guerrilheiros”. Torna-se difícil, para a geração atual, acreditar que tal paranóia realmente aconteceu.
O Luís, que nunca foi, não é e nunca será comunista, foi preso tantas vezes que perdeu a conta. De tanto ser preso, virou celebridade. Até as rádios de Fortaleza noticiavam sobre os prisioneiros do Crato. Com tanta popularidade, os verdadeiros comunistas ficaram curiosos por conhecer este “camarada”, perdido lá no Crato. Ganhou “status” de comunista sem nunca ter sido. Começou a receber, na prisão, latas e latas de doce em conserva que ele ia empilhando. Algumas vinham até com bilhetes dos “camaradas”, exortando-o à resistência etc etc... Como não deu vencimento, quando da libertação solicitou ao major para distribuí-las com outros presos, de todos os matizes. De vez em quando chegava um soldado do 23ºBC, na cela, indagando: - “Quem é Luiz Gonzaga Bezerra Martins”?
- “Sou eu.”
- “Encomenda para o senhor”
Várias vezes, na Siqueira Campos, foi assediado por pessoa estranha, cheia de mistérios, de cuidados, travando o seguinte diálogo:
- Companheiro, eu sou fulano, do partido, estou aqui para prestar solidariedade à sua luta de resistência, bla, blá, blá, blá. Notamos que você nunca se filiou e tenho a missão de convidá-lo a assinar a nossa ficha de inscrição.
- Ih!! Quero nada, rapaz. Que conversa é essa. De jeito nenhum! Eu tenho horror a obrigação. Não suporto viver com nenhum tipo de restrição. Já fui convidado a participar de Câmara Junior, Rotary e nunca aceitei.” “Deus me livre!” Não agüentei Seminário, internato do Colégio Cearense somente porque não suporto que ninguém me imponha limites. Partido político da mesma forma. Seja ele qual for. Eu quero ter a minha liberdade de ir e vir. Sou simpatizante. Agora, eu sou um socialista, pois defendo a justiça social. Mas não sou e nunca serei militante de partido político nenhum. Outro que sofreu perseguições foi o Dr. Raimundo Bezerra. Era filho de uma mulher extremamente caridosa, a Dona Zezinha. A pedido dela e, depois por iniciativa própria tinha um determinado dia para atender, gratuitamente, à população pobre da cidade. Logo apareceu um idiota e outros, mais ainda, devidamente fardados e engalanados, que acreditaram que ele recebia dinheiro de Cuba para fazer aqueles atendimentos.
O Luís sentia uma enorme revolta quando via um homem da grandeza do Sr. Ernani Silva, trancafiado com 14 pessoas, num cubículo onde mal cabiam seis. Era uma colher só para todos se servirem da comida. E ainda mais, sob as ordens de um major alcoólatra, sendo submetido, com os demais cratenses, a dividirem aquele cubículo onde um aparelho sanitário entupido (provavelmente assim preparado), fazia escorrer fezes e a urina, para os arremedos de colchões espalhados pelo chão. Mas uma coisa a ditadura não conseguiu: acabar com o humor dos perseguidos. Este foi mantido incólume, senão, melhorado.
Por: Ivens Mourão
Na foto à esquerda a Dona Zezinha, a caridade em pessoa, induziu o filho a atender gratuitamente aos pobres, sem ajuda de Cuba. Na foto à direita o Sr. Ernani Silva, vítima da tal “Redentora”
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