Islã e a arte abstrata (para uma reflexão)
“O não-especialista só é capaz de reconhecer de uma forma protocolar o papel prioritário do Islã na transmissão do pensamento e da ciência da Grécia antiga para o Ocidente. A maioria de nós chega quase a ignorar as pressões criativas, ao mesmo tempo estimulantes e antagônicas, que a difusão do islã exerceu sobre a cristandade medieval. Tendo recebido com extremo critério crítico e maleabilidade a herança tanto do judaísmo abrâmico e mosaico quanto dos ensinamentos de Jesus, o Islã desenvolveu suas próprias filosofias e alegorias da criação. Foram idéias que se relacionaram imediatamente com uma estética de intrincado teor religioso e filosófico. O tabu, invariavelmente parcial e muitas vezes limitado, sobre a representação da pessoa humana, vincula-se a uma estética singularmente sutil do ornamento, da lógica matemática e da beleza do geométrico. As caligrafias persas e árabe são mais que sugestivas da álgebra (uma disciplina cuja própria origem, como se sabe, remonta a raízes parcialmente islâmicas). Num modo essencial, a tensão da iconoclastia na sensibilidade islâmica e nas práticas arquiteturais sublinha um paradoxo latente em qualquer estética madura posterior à proibição mosaica da reprodução de imagens e à crítica platônica do mimético. Uma malaise sensível continua próxima ao núcleo da representação. Por que reproduzir a substância natural e a beleza do mundo dado? Por que induzir à ilusão ao invés de se tentar estabelecer qualquer visão verdadeira (algo como o ‘princípio de realidade’ em Freud?) A arte não-figurativa e abstrata nunca foi uma invenção do ocidente moderno. Como complemento básico da percepção da prodigalidade figurada do mundo natural, a abstração tem sido, há séculos, crucial para o Islã”.
(In George Steiner: Gramática da criação. Ediora Globo, 2003.)
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