Por José CíceroA Semana Santa antes de qualquer simbologia religiosa e de reflexão dos nossos atos tem sido para mim um momento de intensa saudade do tempo em que a mesma era vivenciada com o maior dos zelos e com a mais forte emoção já contida no espírito humano.
Sem a mínima significação de outrora, portanto, a Semana Santa de hoje(para muitos) carece dos velhos ensinamentos, bem como dos predicados que tradicionalmente a marcaram profundamente, assim como a própria alma dos cristãos devotos.
Agora, a Semana Santa virou de vez uma data comum. Como comum tem sido a maneira com que muitos, incluindo os católicos que se dizem 'não-praticantes' têm se comportado diante deste grande momento de celebração religiosa. E isso poderá ser facilmente constatado não apenas entre as famílias e a sua juventude dita moderna e liberal, mas inclusive, nas iniciativas e celebrações da própria igreja o que difere em muito de quase tudo do que era antes.
O antigo ímpeto com que todos se doavam a este momento sublime do cotidiano sócio-religioso, o sentimentalismo dos mais afeitos à história do sacrifício do Senhor. Assim como a comoção mais geral com que a sociedade se doava à chamada paixão de Cristo nos tempos idos, agora não passam de recordações ressabiadas, guardadas nas brumas dos anos pelos que, muitos os chamam de caretas e conservadores.
A Semana Santa, portanto nos tempos hodiernos, lamentavelmente para a maioria das pessoas não passa de mais um feriadão. Um convite para os exageros de toda sorte. Um instante que muitas das vezes dedicado inteiramente à festança, regada à cerveja, vinho, sexo e aguardente. E só por isso é aguardada por esta maioria que muito pouco ou quase nada sabe da história do verdadeiro Cristo Jesus – o mais perfeito dos revolucionários que já passara pela face da Terra. Um homem que se diferenciou dos demais, dentre outras coisas, pelo amor, o desprendimento, o senso de justiça e a caridade com que se dedicou aos oprimidos e miseráveis do mundo.
Um grande enviado especial que se recusou a aceitar qualquer tipo de poder e de riqueza pela opção que fez pelos pequenos e marginalizados da sociedade. Por conta disso, resignado pagou com sua própria vida o pecado, a opressão e a ignorância dos poderosos que ainda hoje assolam a face do nosso planeta.
Por isso hoje, podemos afirmar que a Semana Santa em quase nada se diferencia das demais datas comemorativas em que as pessoas aproveitam para se fartar, tanto na comilança, quanto na bebedeira. Além de outras farras e desregramentos anticristãos, bem ao ritmo da pior das músicas, a exemplo de um suposto forró de duplo sentido marcado pelos palavrões e outros termos chulos e obscenos; como um verdadeiro acinte aos ouvidos e a paz de toda a sociedade.Direi, por fim, que a Semana Santa hoje é uma saudade batendo, ressoando forte no meu peito, tanto quanto no meu espírito.
Um momento de intensa recordação dos meus anos de criança e adolescente em que a família se dedicava mais conscientemente às coisas espirituais em respeito a providência divina. Uma época que as igrejas ficavam lotadas de dia e de noite.
A cidade, as vilas os sítios respiravam uma paz incomensurável com toda a mais pura sensação da ressurreição de Jesus.Deste modo é que me lembro da minha vó Zefinha residente na vila de Missão Nova, como uma verdadeira matriarca botando ordem na casa. Quando na sexta-feira santa, apenas as crianças ficavam de fora do Jejum. Nada de carne ou outras tentações da gula. Não podíamos apanhar dos pais, não se chamava “nomes feios”, não se trabalhava. Não se pagava nem se cobrava qualquer espécie de dívida.
Pois não se manuseava dinheiro naquele dia. Era de fato, a mais forte simbologia do perdão e do cristão perfeito levados a suas últimas conseqüências. Nenhum rádio podia ser ligado dentro de casa(não havia TV), a não ser no momento em que todos se reuniam no centro da sala para acompanhar pelas rádios Iracema, Progresso e Educadora do Crato as novelas com as belas narrativas da paixão de Cristo. Recordo da voz do locutor: era algo simplesmente primoroso... A gente pensava que era a voz de Deus. E nos momentos mais fortes da narrativa, quase todos choravam diante do sofrimento de Jesus ouvindo as falas, assim como o áudio das chicotadas através das gravação daqueles bolachões radiofônicos. E quando, o disco enganchava as chicotadas de Jesus se multiplicavam.
De alguma maneira, parecia que a minha vó também sentia no próprio corpo todos os açoites que Jesus sofria.Minha vó chorava copiosamente, às vezes acompanhada pelos parentes no mais profundo silêncio contemplativo. E eu do alto da minha ingenuidade de criança, não entendia o porquê daquele choro quase teatral. Eu e todos os meus primos aguardávamos a semana santa com o maior de todos os entusiasmos. Isso porque era um momento diferenciado.
A ceia era gostosa. Como era gostoso ver o vinho no meio da mesa distribuído sob regras rígidas aos adultos. O peixe, a ‘mala-assada’, os ovos de capoeira frito, o queijo e até o bacalhau quando o dinheiro dava. Lembro que os vizinhos trocavam seus pratos e alimentavam os mendigos que vagavam pela rua. O sabor daquela ceia ainda tenho até hoje nas minhas lembranças na cota de um passado que nunca passa.
Assim como era deslumbrante assistirmos o sermão do padre na igreja. A beleza da procissão do domingo de ramo, incluindo a quarta-feira de cinza, o período da quaresma quando não se podia mais matar nenhum Passarim de baladeira. A celebração da páscoa, a procissão do senhor-morto, bem como a criação do sítio do Judas e a sua malhação, os soldados encaretados com seus chicotes em punho para açoitar os ladrões.
A multidão de adultos e crianças nas portas das residências com suas sacolas de pano pedindo as tradicionais esmolas(jejuns) da semana santa – “me dê um jejuzim pra minha mãe jejuar!”. E todos tinham que ofertar, senão estariam cometendo um pecado mortal diante de Deus. Não podíamos mentir, brigar com os colegas e, tampouco desejar mal aos outros. Era um momento afirmativo de confraternização com a família e com o próximo.
Quem acaso comesse, sobretudo na sexta-feira, qualquer tipo de carne estaria consumindo a própria carne e o sangue de Jesus. As bodegas não abriam, pois não podiam vender nada. Acaso uma emergência ocorresse o bodegueiro teria que doar, mas jamais receber nenhuma espécie de pagamento naquele dia santificado. O vil metal era as próprias moedas com as quais os Judeus venderam Cristo.
Alguns mais radicais, a exemplo da minha vó, sequer podiam tomar banho naquele dia. Quem insistisse neste expediente ficaria “entrevado”, diziam os mais velhos, como um castigo dos céus por conta da desobidiência. Posto que também constituia um pecado.
Namorar também era coisa feia e, portanto proibido. O sexo era igualmente um pecado mortal. Não podíamos sequer jogar bola, pois éramos logo repreendidos pela minha vó. Tínhamos todos que rezar. E eu fazia tudo para me esconder daquele momento. Nunca fui dado a rezar ao pé da letra, isto é, aos moldes tradicionais como verdadeiros 'decorebas'. Sempre fiz minhas rezas e orações de puro improviso. E penso até que Deus que inclusive, não tem religião, as recebia como a melhor da sua atenção e desvelo.E quando me encontrava na cidade na época da semana santa, a rotina era a mesma. A minha outra vó, Petronila(D. Peta) cumpria o mesmo ritual. Era assim. Foi assim.
Agora por mais que nos esforcemos nunca haveremos de reviver as Semanas Santas do nosso passado. Eis a principal razão da minha mais absoluta saudade... "O tempo passou tão de repente. Será que venta na eternidade?", dizia Veríssimo.
(*) José Cícero
Profesor, Poeta e Escritor.
Secretário de Cultura
Aurora-CE.
Foto Ilustratia: da Internet